quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Provável série de textos de pouco rigor científico sobre Santo André e culinária, temas, por vezes, relacionados à bruta.



Texto I – Cem distribuidores de moussaka de lentilhas.
Na construção de Santo André seguiram-se os paradigmas da época e, em vez dos respeitados modelos e formas de cidade que chegaram até nós, foram escolhidos os exemplos da última geração das novas cidades inglesas. Era uma oportunidade, pensaram os urbanistas e arquitectos, de marcar ou antecipar com a cidade outra forma de viver, legando-a aos vindouros e esperando o mesmo respeito.
Essas novas cidades eram concebidas como um padrão em rede (em vez do padrão radial das antigas cidades) com as estradas principais a circundarem os bairros em vez de os atravessar. Entre cada área construída, grandes espaçamentos de zonas verdes. Cada bairro teria uma arquitectura específica, facilitando a sua identificação, e deveria funcionar como uma comunidade semi-autónoma.
Desta forma, os bairros poderiam ser vistos como pequenas cidades antigas, densas e  compactas, onde as relações sociais ainda se poderiam basear na proximidade física e na vizinhança e onde se manteria a cenografia e o impacto visual tradicionais, agora com outra arquitectura.
Conciliavam-se, assim, os atractivos das cidades antigas com as necessidades contemporâneas de mobilidade urbana.
Algumas destas ideias foram concretizadas em Santo André, apesar do projecto inicial ter sido revisto diversas vezes e as alterações feitas aproximarem gradualmente esta cidade do modelo de cidade tradicional.
 Estes pressupostos seriam apenas a face mais suave de uma concepção futurista (viviam-se os anos 60) de cidade adaptada a uma nova forma de viver. Segundo a mesma, no futuro, o espaço urbano não teria nem lugares, nem limites e seria apenas composto por uma rede de conexões visíveis (estradas) ou invisíveis (Internet). Seria uma comunidade difusa, onde a mobilidade, os gostos e interesses se sobreporiam à proximidade na estruturação das comunidades.
Normalmente, os defensores do urbano difuso são apreciadores da natureza (alguns apenas não são apreciadores de pessoas), fartos que estão da pouco sossegada selva de betão de onde trouxeram os seus carros e onde passam boa parte do seu tempo conectando-se para ir trabalhar ou para pedir sal à vizinha.
Costuma-se usar a parábola do distribuidor de tofu para contestar esta opção de vida, quanto às suas consequências ambientais. Não sei o porquê do tofu, mas também deve funcionar com moussaka de lentilhas. Diz a parábola para imaginarmos o comportamento de cem habitantes de uma cidade tradicional a quem apetece uma moussakinha. O mais certo é irem todos a pé ao Terrace. Tudo sem emissão de gases. Mas se cada um desses cem habitantes mora numa casa individual no fim de uma estradinha e encomenda o produto pela Internet, teremos cem moussakas a ser entregues por cem motorizadas desenfreadas e poluentes.
Por outro lado, o urbano difuso parece ser a antítese do espírito urbano e a negação de alguns dos privilégios da civilização como a partilha de um território conformado para a possibilidade da vida em comum, seja ela estável, aleatória ou inédita.

2 comentários:

  1. muito bem observado. realmente há que fruir o espaço urbano e torná-lo o mais nosso possível. nosso no sentido de reivindicar para todos o espaço da individualidade, mas mantendo-o nosso, no sentido da partilha do sal e dos coentros...

    :-)

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  2. Obrigado Rui. Próximo tema: uma horta urbana colectiva de coentros faz um belo espaço verde.

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